MERCADOS ILÍCITOS TRANSNACIONAIS
O Fundo Monetário Internacional (2023)³ revelou que na América Latina e no Caribe, há um aumento no desvio padrão nas taxas de homicídio intencionais — indicando que uma maior variabilidade ou frequência desses crimes — está associado a uma redução de 0,14 pontos percentuais no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Então, reduzir a discrepância entre as taxas de criminalidade da região e a média mundial em 20%, 50% ou 100%, resultaria em um aumento de 0,05, 0,1 ou 0,5 pontos percentuais, respectivamente, no crescimento do PIB dos países da região.
No contexto do Brasil, o FMI calculou que se os níveis de criminalidade do país diminuíssem para a média mundial, o PIB poderia ter um incremento de 0,6 ponto porcentual. Segundo o estudo, isso sublinha o impacto significativo que a criminalidade, medida por meio de homicídios intencionais exerce sobre a economia.
Esta análise destaca a natureza predominante da criminalidade e suas motivações, onde cerca de 85% dos delitos são economicamente motivados⁴ – os demais são crimes passionais de dinâmicas interpessoais ou crimes políticos -, que não só resultam em espoliação direta de recursos, mas também instauram uma cadeia de eventos que sustentam mercados ilícitos e as organizações criminosas que os operam.
É importante ressaltar que, essa dinâmica gera externalidades negativas, como a violência criminosa direcionada às vítimas ou policiais, impactando direta e indiretamente no crescimento econômico. Portanto, diagnósticos como esse, oferecido pelo FMI, reforçam a necessidade de abordar essas questões não apenas como um desafio de segurança pública, mas como um componente crítico para a estratégia de desenvolvimento econômico. Isso é uma preocupação central deste Anuário ao explorar as dimensões e impactos da criminalidade economicamente motivada.
ENTENDA A ECONOMIA DO CRIME
Os crimes economicamente motivados são aqueles que resultam em espoliação de empresas ou indivíduos, como o roubo, furto, receptação, entre outros, e aqueles que introduzem produtos ilícitos no mercado, como contrabando e falsificações.
São eventos associados à produção, aquisição ou comercialização de produtos em um mercado ilícito, e que geram externalidades negativas, como foi sustentado acima.
Assim, o conceito de economia ilícita, utilizado neste Anuário, refere-se à formação de mercados e cadeias ilícitas (incluindo a financeira) e suas externalidades de ordem social (violência, corrupção) e econômica (efeitos do aumento das perdas e riscos, além da perda de arrecadação).
Logo, essa perspectiva, originalmente, é fundamentada na teoria econômica do crime, que tem suas origens na abordagem racionalista dos incentivos econômicos ao comportamento criminal, discutida por pensadores clássicos, como Adam Smith e Jeremy Bentham (Ehrlich, 1996)⁵. A teoria foi modernamente desenvolvida por Gary Becker, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, em 1992, com seu artigo seminal: “Crime and Punishment: an economic approach” de 1968⁶, além de contribuições de outros autores clássicos como Ehrlich (1973)⁷, Fleischer (1966)⁸ e Tullock (1974)⁹.
A abordagem economicista contemporânea, que analisa o crime sob o prisma da oferta e demanda por produtos e serviços ilegais, contribui para formulação de políticas públicas focadas no aumento do custo do comportamento criminal, através da ampliação da aplicação da lei, que seja ao mesmo tempo, eficiente e legal. Tal abordagem incentivou estudos, tanto corporativos, quanto acadêmicos, sobre a identificação e descrição do problema da formação dos mercados ilícitos e da própria economia ilícita.
Logo, quando se identifica grandes volumes e valores movimentados, como o Anuário faz, também se encontra uma “cadeia produtiva ilícita”, que se formou para atender alta demanda da sociedade e está em pleno funcionamento, mas operada por firmas ilícitas (quadrilhas) ligadas às redes criminosas, que conectam o produtor, atacadista, varejista, consumidor final e lavadores de dinheiro. Portanto, sem atingir essas cadeias e seus principais operadores, não há controle dos mercados ilícitos.
Neste sentido, é fundamental entender dois pontos, veja: a economia ilícita é parte da economia real, que atende parte da demanda instalada por algum produto ou serviço; e que a diferença entre elas está nos “processos de produção e comercialização”, que são ilegais, corruptores, espoliadores e, em regra, violentos. Dessa forma, não se pode controlar mercados ilícitos apenas com a concorrência legal ou política tributária, pois as firmas ilícitas não se submetem a elas quando atuam contra concorrentes ou contra a fiscalização/regulação estatal. Pelo contrário, ao perceberem a margem de lucro, o baixo custo e risco de prisão e perdas, tendem a empreender mais e tornarem-se ainda mais violentas, aumentando o risco de vitimização para pessoas e as empresas.
É a partir dessa dinâmica de continuidade e racionalidade econômica que Albanese (2000), um dos principais pesquisadores de crime organizado em mercados ilícitos, descreve precisamente o empreendedorismo criminal:
- Empreendimento criminal de caráter contínuo que racionalmente busca o lucro na exploração de atividades ilícitas, sua existência contínua é assegurada pelo uso da força, de ameaças, no exercício de monopólios e/ou com a corrupção de agentes públicos (ALBANESE, 2000, p. 411)¹⁰.
Por isso, entender a racionalidade da atividade criminal, o regime de incentivos econômicos e a diferente forma de atuação do ator econômico criminal, compõem o grande desafio a ser enfrentado na construção de soluções de controle, sejam elas na forma de políticas públicas ou ações privadas de controle do risco de vitimização. Razão pela qual o economista Gary Becker já anunciava, em 1968, que: “(…) o crime é uma atividade ou indústria economicamente importante, apesar da negligência quase total dos economistas”.
O CONCEITO DE MERCADOS
ILÍCITOS TRANSNACIONAIS (MIT)
Como nas edições anteriores, este Anuário segue a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que desde 2013 lidera a Task Force on Countering Illicit Trade, para abordar o comércio ilícito. A OCDE define este fenômeno como a presença, seja combinada ou individual, de quatro categorias de produtos e serviços ilegais, conforme apresentado por Williams (2016)¹¹:
- ● Produtos e serviços proibidos como narcóticos e comércio sexual;
- ● Venda irregular de commodities, como antiguidades ou fauna e flora, produtos que infrinjam os direitos intelectuais e não adequados aos padrões locais;
- ● Comércio de produtos fora de seu mercado de destino, sem pagar os impostos de consumo local, como cigarros e álcool;
- ● Venda de mercadorias roubadas, como carros e eletrônicos.
Vale lembrar que, os mercados ilícitos transnacionais envolvem crimes como roubo e furto de cargas, veículos, celulares, contrabando, descaminho e falsificação, que ocorrem em diversos países, e devem ser vistos como um problema criminal único, para ser eficazmente abordados por políticas públicas, com base em sua dimensão e dinâmica, e não apenas combatidos pelos delitos que os promovem.
Para melhor monitoramento e avaliação da dimensão e dinâmica, o Anuário categoriza os produtos ilícitos em: (1) produtos “primários” ou propriamente ilegais, representados principalmente pelas drogas e tipos de armas ou calibres ilegais; e (2) produtos “secundários”, que que até podem ser produzidos de forma legal, no país de origem, mas que são adquiridos e comercializados de forma ilegal, invadindo setores legais da indústria e o comércio brasileiro. Lembrando que apenas os produtos ilícitos secundários, são objeto deste Anuário.
Além da definição da OCDE, utiliza-se a classificação proposta por Naylor (2003)¹², a mesma adotada por Picard (2013)¹³ e Lampe (2016)¹⁴, que reclassificam os dados com base no lucro, destacando a participação de organizações criminosas em mercados ilícitos (automotivo, eletrônico, tabaco, químico) pela receita gerada (Capítulo 2), aspecto, muitas vezes negligenciado em análises puramente jurídicas.
FIRMAS ILÍCITAS EM REDES:
A OPERAÇÃO DOS MERCADOS ILÍCITOS
As redes criminais são um tipo de organização criminal “horizontal”, sem uma estrutura hierárquica fixa, conectando indivíduos e grupos especializados em diferentes atividades ilícitas, como roubo, contrabando e corrupção. Essas redes são conectadas pelo empreendedorismo criminal, compostas por uma variedade de indivíduos ou firmas ilícitas, incluindo os agentes públicos corruptos, profissionais liberais (advogados, contadores etc.), empresários, produtores agrícolas e comerciantes, que colaboram em atividades criminosas motivadas por ganhos ilícitos, conscientemente, e não por ideologia.
Como qualquer rede comercial e financeira, indivíduos empreendedores aproveitam as conexões para expandir operações em múltiplos mercados ilícitos (drogas, tabaco, eletrônicos, armas e outros), inclusive, fazem isso no ambiente digital, adaptando-se às circunstâncias. Alguns atores-chave, por sua influência, atuam como “agências reguladoras ilícitas”, estabelecendo regras informais para garantir um ambiente de negócios “favorável”, de como entrar, operar e sair de determinado mercado ilícito, podendo definir como e com quem negociar, corromper ou quando atacar de forma solidária, a pedido de “nós” importantes.
Essas “agências reguladoras ilícitas” também competem entre si, o que fica mais evidente quando há um aumento significativo nos índices de violência em determinada região. E isso acontece porque, diferentemente das firmas legítimas, as ilícitas não podem recorrer ao Estado.
Em suma, a não observação dessas regras informais leva à exclusão do mercado, muitas vezes, por meio da violência¹⁵ – o que pode aumentar ou diminuir a depender do controle exercido por uma ou um grupo de organizações criminosas, e devido à natureza do produto ou serviço ilícito sendo comercializado. Mas também cria adesão entre os participantes, por isso, mudanças no nível de custo ao crime, com diminuição da impunidade e controle efetivo de presos operadores de redes, tendem a desencadear eventos violentos. Logo, como o custo de reversão de uma rede criminal é cada vez maior, com o passar do tempo, o Estado precisa estar preparado para enfrentar de forma legal, equilibrada e firme a reação violenta das redes criminais, levando este risco para longe das pessoas e empresas.
Portanto, entender e desmantelar as “firmas” e os “nós” estratégicos dessas redes, que facilitam conexões cruciais e operações, entre diferentes segmentos do mercado ilícito, é essencial para combater eficazmente o crime organizado. Além da melhor relação custo-benefício em termos da curva esforço x resultado, sendo que o foco nesses “nós’’ permite reduzir também a principal externalidade dos mercados ilícitos: a violência criminal.
O TEMA DA ECONOMIA ILÍCITA
E DOS MERCADOS ILÍCITOS NO BRASIL
Precisamos lembrar que, esforços como o Anuário de Mercados Ilícitos da FIESP e as contribuições de profissionais de diversos setores, que ultrapassam as fronteiras acadêmicas, buscam modernizar o combate e controle dos mercados ilícitos no Brasil, fornecendo bases científicas essenciais aos profissionais do sistema de justiça criminal.
Com isso, a literatura, que tem por volta de 30 anos de tratamento do tema, é enriquecida pelas contribuições de diversos especialistas. Geraldo Brenner¹⁶ destaca-se pela tradução e adaptação dos conceitos de Becker para o contexto brasileiro. O livro “Economia do Crime no Brasil” (2021)¹⁷, organizado por Marco Antônio Jorge e Marcelo Justus, surge da necessidade de um material que consolide conhecimentos essenciais sobre o tema, servindo como um manual voltado para a realidade do país. Pery Shikida¹⁸ contribui com estudos empíricos baseados em pesquisas com criminosos presos, confirmando a teoria da escolha racional no comportamento criminal. Outros Anuários e materiais importantes à Segurança Pública do Brasil também trazem aspectos relevantes sobre a economia do crime, como é o caso do Atlas da Violência e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Na academia paulista, por exemplo, dentre as ações inovativas tomadas durante o período que esta edição do Anuário se concentra, notou-se novas iniciativas da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (ESEM-USP)¹⁹, que em 2023, alcançou a marca de 16.371 alunos certificados, de diversos países, majoritariamente profissionais de segurança pública, destacando-se como um centro líder em educação e pesquisa sobre crime organizado e mercados ilícitos. Ademais, em parceria com a Universidade Presbiteriana Mackenzie e a Comunidade de Polícias das Américas (AMERIPOL), houve a produção do “Atlas do Sistema de Justiça Criminal das Américas”, uma ferramenta inovadora para auxiliar na cooperação jurídico-policial entre as polícias nacionais. Então, a inauguração de uma Biblioteca Virtual²⁰ específica sobre esses temas promete também ser um recurso valioso para acadêmicos e profissionais da área.
Por sua vez, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) lançou o FGV Analytics²¹, um Centro de Estudos que utilizará ferramentas de inteligência artificial para auxiliar na formação de políticas públicas em segurança pública. Esse Centro surge a partir de uma parceria entre a FGV, a Fapesp, a ESEM-USP e a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP)²².
É importante continuar destacando que muitas dessas iniciativas contaram com o apoio financeiro do setor privado, incluindo indústrias que integram o ecossistema FIESP. A Philip Morris International, por meio do programa PMI Impact²³–²⁴, a CropLife Brasil²⁵, que desde 2021 financia um programa de capacitação contínua sobre o combate aos mercados ilícitos de insumos agrícolas ilegais. Além disso, instituições públicas e internacionais, como o programa EUROFRONT da União Europeia para Gestão de Fronteiras e o Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil, também ofereceram suporte formal para esses esforços.
Por fim, ressaltamos os esforços dos governos estaduais²⁶, do Sul e Sudeste do Brasil, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, que em 2024, firmaram um “Pacto Regional de Segurança Pública” para combater o crime organizado. Este pacto foca na criação de um gabinete integrado de inteligência para melhorar a cooperação entre as forças de segurança e uniformizar práticas policiais, e propõe alterações legislativas visando aumentar o custo das atividades criminosas, como apontado por um dos governadores. Enfim, os projetos de lei decorrentes deste pacto serão submetidos à análise dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
MERCADOS ILÍCITOS TRANSNACIONAIS
NO BRASIL
A Global Initiative Against Transnational Organized Crime (GITOC), a maior referência sobre o tema dos mercados ilícitos e crime organizado transnacional do mundo, também demonstrou em seu mais recente relatório Global Organized Crime Index (2023) que o Brasil segue atrativo aos criminosos. E, sublinhou ainda que o país testemunhou um aumento na criminalidade e uma diminuição na resiliência ao crime organizado de 2021 a 2023.
No Índice²⁷ que avaliou 193 países membros da ONU, em termos de criminalidade (mercados criminosos²⁸ e atores criminosos²⁹) e resiliência³⁰, o Brasil viu sua pontuação aumentar para 6,77 em 2023, um acréscimo de 0,27 pontos em relação a 2021, e uma queda na resiliência de 5,04 para 4,92. No último período, o Brasil ainda anotou 6,93 pontos (+0,43) para a categoria de mercados criminosos e 6,60 (+0,10) para a categoria de atores criminosos, piorando em ambos. Para fins de comparação, a pontuação média global de criminalidade é 5,03, composto pela pontuação global de mercados criminosos de 4,88 e a pontuação global de atores criminosos de 5,19. A pontuação global de resiliência é 4,81. A média das Américas para criminalidade foi de 5,20 (+0,13) e 4,89 (+0,19) para resiliência.
Assim, os mercados que mais se assimilam ao tema do Anuário, que são classificados pelo Índice como comércio de bens falsificados³¹ e bens de consumo sujeito a um imposto especial³², anotaram, respectivamente a nível global 4,98 e 4,59. Sobre o comércio de bens falsificados, o Brasil anotou 7,0, posicionando-se em quarto lugar com relação aos países da América do Sul. Quanto ao segundo, o Brasil foi o sexto na região, com 5,0 pontos.
Ademais, todos os mercados e atores criminosos encontrados nas Américas estão presentes em vários países, sublinhando o alcance desses mercados e a importância do continente para o comércio ilícito global, com suas regiões consistentemente figurando entre as três principais globalmente para 11 dos 15 mercados criminosos.
Por fim, recomendamos o Índice que para estabelecer um entendimento abrangente da influência global da criminalidade nas Américas, em particular no Brasil, é necessário aprofundar-se nesses mercados criminosos em maior detalhe e delinear as especificidades contextuais que elucidam as conexões intrincadas entre eles. É isso que este Anuário faz!
MERCADOS ILÍCITOS TRANSNACIONAIS
MONITORADOS DE SÃO PAULO
Os mercados ilícitos monitorados funcionam como uma aproximação de todos os mercados ilícitos transnacionais que operam no estado de São Paulo. São eles: tabaco, eletrônicos, vestuário, químicos, automotivos, alimentos, higiene, brinquedos e medicamentos.
São Paulo, sendo o centro econômico do Brasil e responsável por 30,2% do PIB nacional (2020)³³ – último dado disponível -, é um ponto crítico não apenas para o comércio e a indústria lícita, mas também para operações ilícitas. O ramo ilícito pode ser, de modo relativo, ainda mais representativo, já que São Paulo é o destino final de diversas rotas nacionais e internacionais de contrabando e descaminho (produção ilícita externa), além de possuir o maior número de roubos e furtos do país (produção ilícita interna). Portanto, considerando as estimativas de subnotificação³⁴, o número estimado de roubos é em torno de 51.600 casos/mês no estado³⁵, que ocorrem contra as mais diversas vítimas, como pedestres, padarias, motoristas, táxis, farmácias, clínicas, fábricas, lojas, bancos, transportadores de cargas, dentre outros.
A ATRATIVIDADE E CENTRALIDADE
DE SÃO PAULO PARA AS REDES
CRIMINAIS DE MIT
Como podemos notar, São Paulo é um epicentro para as redes criminosas transnacionais, em grande parte devido ao baixo “custo agregado” do crime no Brasil, onde os riscos de prisão e perda de renda criminal são mínimos, comparados aos lucros potenciais. Essa dinâmica é definida na literatura econômica do crime como “dissuasão e a inabilitação”. Sem este custo agregado, locais onde há mercado e boa estrutura logística instalada atraem de forma voraz as redes criminais operadoras de mercados ilícitos transnacionais, como é o caso de São Paulo³⁶.
Esta condição é confirmada pelos resultados dos órgãos de controle de aduana. Os valores mensais de apreensões registradas no período de 2022 disponibilizados pela Receita Federal, demonstram que a 8ª Região Fiscal (RF) – São Paulo – é responsável por 20% de todas as apreensões realizadas no país, a primeira entre as regiões fiscais, mesmo não sendo uma RF de fronteira. Depois dela, as regiões por onde operam as cadeias logísticas de mercados ilícitos na 1ª e 9ª regiões fiscais, onde encontram-se os estados do Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina que são, além de consumidores, corredores logísticos entre os principais postos de fronteira seca e São Paulo. Somadas, essas regiões representam 70% do total de apreensões em território brasileiro.
Essa tendência preocupante é corroborada por um estudo internacional, que segundo o mapa de Portos e Free Trade Zone contaminadas por operações logísticas ilícitas, produzido pelo International Coalition Against Illicit Economies (ICAIE, 2022)³⁷, destaca São Paulo, especificamente o Porto de Santos³⁸, como um dos hubs ilícitos principais, ao lado da Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai. O ICAIE (2023)³⁹ também associa que a influência do Primeiro Comando da Capital (PCC) sobre o Porto de Santos e regiões fronteiriças, que facilitou a expansão do grupo em atividades como o comércio de medicamentos ilícitos e falsificados, diversificando suas fontes de renda ilegal.
Além disso, a magnitude do problema se estende para além dos portos. O roubo de carga, por exemplo, que gerou perdas de cerca de R$ 1,2 bilhões, em 2023, no Brasil (17.108 ocorrências), é particularmente grave em São Paulo, como sugere a série de reportagens do jornal O Estado de São Paulo (2024)⁴⁰.
O estado encabeçou o ranking nacional de roubo de cargas, com 42% dos casos, marcando um aumento de 4% em relação a 2022, destacando as cidades da Baixada Santista, visto que os roubos quadruplicaram no período. Este aumento nos roubos se concentra em cargas classificadas como “miscelâneas” ou “fracionadas”, que englobam uma ampla variedade de produtos de e-commerce e representam 43% das ocorrências, um crescimento de 10% em comparação ao ano anterior. A preferência por essas cargas decorre da facilidade com que os produtos são escoados e da crescente atuação de quadrilhas organizadas, como aponta a reportagem.
Com dados mais desagregados, a Análise de Sinistralidade da NStech (2023)⁴¹ revelou que, entre janeiro e março de 2023⁴²:
- ● A Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo (SP-348), totalizou 11,6% do valor sinistrado, perdendo apenas para ocorrências em perímetro urbano;
- ● Na BR-050, mais de 90% dos valores sinistrados foram concentrados no estado de São Paulo, sendo os principais alvos as cargas fracionadas, bebidas e agrícolas;
- ● As cargas fracionadas foram o principal alvo das quadrilhas, resultando em um valor sinistrado de mais de 37% do total. São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais concentram 80% do valor sinistrado no segmento;
- ● Minérios e cigarros tiveram significativa parcela dos danos, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, totalizando cerca de 20%.
- ● Os gêneros alimentícios vieram em segundo, causando 23,4% dos prejuízos, com São Paulo sozinho responsável por 51% do impacto no setor;
- ● Outras cargas, como medicamentos, produtos de higiene e limpeza, agrícolas, bebidas, peças de automóveis, siderúrgicos e cosméticos, representaram mais de 25% dos prejuízos, com os medicamentos tendo o maior impacto em março, onde 85% dos danos foram registrados, destacando São Paulo como o estado mais afetado.
Por fim, reforçando a centralidade de São Paulo para as redes criminais, o último relatório do Escritório do Representante de Comércio dos EUA (2023)⁴³ identificou locais na região da Rua 25 de Março, como notórios por venderem mercadorias falsificadas.
OS MERCADOS ILÍCITOS
NO CIBERESPAÇO
Vale enfatizar que, a evolução tecnológica tem ampliado significativamente o espectro do crime organizado, com um destaque preocupante para o uso de plataformas digitais, como e-commerce⁴⁴ e marketplaces⁴⁵ – modalidades de cadeia logística ilícita. Enquanto o Anuário 2023 demonstrou que as plataformas digitais foram determinantes para a potencialização das ações dos operadores ilícitos, o Anuário 2024 aprofunda a complexidade dessa questão, ao observar que a atuação de mercados ilícitos transnacionais no ciberespaço se estende para além das transações em plataformas digitais, engajando-se em diversas formas de atividades ilícitas online, que por, muitas vezes, causam externalidades negativas físicas⁴⁶.
A atual edição do Anuário, através de Grupos de Trabalho do DESEG, destaca os crescentes riscos do crime cibernético, posicionado pelo relatório Global Cybersecurity Outlook de 2023⁴⁷ como uma das 10 (dez) principais ameaças globais da próxima década. A previsão da Cybersecurity Ventures⁴⁸ é que os custos globais do cibercrime cheguem a US$10,5 trilhões anualmente até 2025, tornando a cifra da modalidade mais lucrativa que o comércio global de todas as principais drogas ilegais combinadas. Ademais, os custos associados às violações de dados são substanciais e crescentes, como mostra o Relatório de Custos da Violação de Dados de 2023 da IBM⁴⁹, que estima o custo médio global de uma violação em US$4,45 milhões.
No contexto brasileiro, a digitalização avançada é evidente, com 84% da população acessando a internet em 2023⁵⁰, o que faz do Brasil o líder em conectividade na América Latina e um dos primeiros no ranking de governo digital global. Contudo, esta expansão digital vem acompanhada de desafios significativos: a Kaspersky⁵¹ reportou 1,15 milhões de tentativas de ataques ransomware⁵² na América Latina entre 2022 e 2023, com o Brasil concentrando mais da metade destes ataques, destacando-se como um dos países mais visados mundialmente. A vulnerabilidade do Brasil aos cibercrimes é agravada pela insuficiência de legislação específica, como aponta o relatório Internet Organised Crime Threat Assessment (IOCTA, 2018)⁵³ da EUROPOL, que identifica o país tanto como o principal alvo quanto a maior fonte de ataques online na América Latina.
Um levantamento feito pelo DESEG, em 2022⁵⁴, sobre a maturidade cibernética da indústria brasileira revelou que, até o primeiro semestre de 2022, dentre as 261 empresas industriais consultadas, mais da metade (53,3%) já havia implementado políticas de Segurança Cibernética e/ou da Informação. No entanto, um contraste é observado no fato de que, quase 36% dessas empresas sofreram ataques cibernéticos. Dentre estes, 63,2% foram ineficazes graças às medidas de segurança adotadas, mas, em 24 casos, os criminosos conseguiram êxito, resultando em tentativas de extorsão.
Esses números revelam uma realidade dupla: por um lado, uma conscientização crescente e esforços para fortalecer a segurança; por outro, a persistente ameaça dos ataques cibernéticos. Mais encorajador ainda é que 57,9% das empresas indicaram um envolvimento direto e apoio da alta administração nos temas de Segurança da Informação. No entanto, apenas 38,7% possuem um plano estruturado de resposta a incidentes, o que destaca uma área crítica a ser melhorada.
CONTRABANDO DIGITAL E
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
A pesquisa do DESEG, apesar de revelar um esforço importante da indústria, certamente leva à reflexão sobre o cenário à frente com a evolução da segurança cibernética através da facilidade promovida pela Inteligência Artificial (IA) generativa, que ao mesmo tempo, oferece novas ferramentas para proteção, também pode ser utilizada para desenvolver ataques mais sofisticados. O tema tem sido vastamente debatido mundialmente nos principais Fóruns globais, tendo sido pauta do Fórum Econômico Mundial, em Davos⁵⁵, de 2024. Enfim, a grande maioria dos líderes mundiais (86%) e dos especialistas em segurança cibernética (93%) acreditam que as próximas trincheiras serão virtuais⁵⁶.
Na literatura econômica do crime, Naylor (2000) ressalta a necessidade de distinguir entre novos crimes e métodos de cometer crimes tradicionais, como extorsão e fraude, por meio de tecnologias digitais. Essa diferenciação é crucial no contexto atual, onde a IA está expandindo o alcance e a complexidade dos atos criminosos. A observação de um aumento significativo na frequência de incidentes relacionados à IA, conforme apontado por organizações como a Surfshark⁵⁷ e a IBM⁵⁸, reflete a evolução da capacidade tecnológica e seu impacto potencial na criminalidade. Diante disso, a indústria brasileira enfrenta o desafio contínuo de adaptar suas estratégias de segurança cibernética para se manter à frente dos avanços tecnológicos e das táticas cada vez mais sofisticadas dos criminosos.
Reiterando dados da OCDE (2022)⁵⁹, que representam o atual diagnóstico e posicionamento da instituição sobre o tema, os mesmos apontados no Anuário anterior, observa-se um crescimento expressivo do comércio eletrônico, com um aumento de 25,7%, em 2020, impulsionado pela pandemia. E com projeções que indicam que as vendas e-commerce alcançarão US$7,2 trilhões até 2025, representando 24,5% do total das vendas no varejo.
A exploração dos avanços da inteligência artificial por criminosos, especialmente em contextos de e-commerce e marketplaces, foi destacada em um breve exercício com o Chat GPT 4 da OpenAI⁶⁰. Sua resposta incluiu a geração automatizada de conteúdo protegido por direitos autorais, tornando difícil a detecção de pirataria; a criação de réplicas precisas de produtos de luxo a medicamentos, dificultando a distinção entre originais e falsificados; a geração de tecnologias de deepfake para criar ou alterar mídias digitais, violando direitos autorais e enganando consumidores; a exploração de vulnerabilidades em sistemas de proteção de propriedade intelectual, permitindo o roubo de informações.
Neste contexto, o Cyber Security Report de 2024 da Check Point⁶¹, por exemplo, enquanto aponta que ciberataques aumentaram globalmente em 38%, em 2022, em relação ao ano anterior, advertindo que a maturidade da tecnologia de IA, como o próprio Chat GPT, pode acelerar ainda mais o número de ciberataques no futuro, especialmente à medida que os ataques têm sido impulsionados por hackers e gangues de ransomware⁶² menores e mais ágeis.
METODOLOGIA DE MENSURAÇÃO
DO VOLUME E DOS IMPACTOS DE MIT
A metodologia empregada no Anuário de Mercados Ilícitos é mantida constante de uma edição para outra para assegurar a comparabilidade dos dados ao longo do tempo e permitir uma análise consistente da evolução dos mercados ilícitos. Especialmente porque a quantificação do volume de mercadorias ilícitas é um desafio à parte, pela dificuldade de acessar dados confiáveis e de definir os produtos e valores que são alvos das redes criminosas transnacionais.
Portanto, a escolha por desenvolver uma metodologia conservadora quanto à inclusão de produtos e estimativas de tamanho real, reduzindo as fontes de dados às apreensões públicas, sendo estimadas as subnotificações, visa proporcionar uma base de dados confiável e comparável, essencial para o principal objetivo técnico deste Anuário, que é analisar a evolução do problema dos mercados ilícitos no estado de São Paulo.
Para quantificação do volume impacto dos mercados ilícitos transnacionais secundários na economia paulista, consideramos a demanda pelo produto, seja lícita, produzida pela indústria nacional, ou ilícita, “produzida” por roubo, furto, contrabando, descaminho, contrafação e pirataria dos produtos; e a oferta, por meio do valor da produção de ambos os segmentos (lícito e ilícito). Ou seja, a abordagem quantitativa do Anuário de Mercados Ilícitos é caracterizada por um método estritamente contábil, como já mencionado anteriormente, que é uma alternativa frequentemente utilizada na literatura especializada em avaliação de custos do crime.
A demanda lícita é calculada através dos dados de produção e valor da produção declarados diretamente pelas associações industriais ou através do IBGE. Calcula-se os postos de trabalho e a renda de salários por produtos com base nas declarações da mesma origem.
Por outro lado, a demanda ilícita é calculada através dos dados da “produção ilícita interna”, dada primeiro pelo total de roubos e furtos (carga e veículos) estimados por segmento de mercado (registro público e subnotificação estimada) no estado de São Paulo, transformada em valores, tendo por base o valor declarado pela vítima (como em alguns casos de roubo de carga) ou o valor do bem produzido legalmente, aplicando-se uma desvalorização média por tipo de produto e de uso estimado.
O valor da “produção ilícita externa” (representado no Capítulo 2, como “taxa de transnacionalidade do setor”) é dado pelo valor dos produtos apreendidos pela Receita Federal nos canais vermelho, amarelo e operações de fiscalização, multiplicado o resultado desse desempenho para o total de fiscalizações desembaraçadas no canal verde, de forma a estimar o total de apreensões que ocorreriam se a Receita Federal aplicasse seu método de fiscalização sobre todos os canais e obtivesse o mesmo desempenho.
Em resumo, a opção por monetizar a produção ilícita permite avaliar um mercado ilegal “real” também impactado pelos efeitos da inflação e da retração/expansão da capacidade de consumo dos paulistas, além de permitir os efeitos da melhora competitiva, em termos de formação de preço, da produção lícita sobre a produção/demanda ilícita.
MÉTODO PARA ESTIMAR A EVOLUÇÃO
DOS MERCADOS ILÍCITOS
A metodologia para estimar a produção ilícita total é conservadora, principalmente quanto à produção externa, pois considera como fator preponderante a capacidade fiscalizatória dos órgãos de controle (como polícias e a Receita Federal); portanto, está submetida ao desempenho destas. Sabe-se que parte considerável dos produtos que entram no país o fazem por pontos da fronteira sem qualquer fiscalização formal, constituindo um importante fluxo de entrada que não é possível aqui estimar, o que obriga a limitar a estimativa à entrada nos pontos de acesso onde há fiscalização formal. Entende-se ser o suficiente, em um primeiro momento, pois precisa-se de informações seguras sobre o fenômeno e a variação da incidência ao longo do tempo, de forma a permitir entender a dinâmica dos mercados ilícitos, quanto ao fluxo, à variedade de produtos e à atratividade do mercado consumidor ilícito paulista.
Sendo assim, numa discussão mais aprofundada sobre metodologias específicas, para a mensuração do ônus causado pela atividade criminal, o relatório The Costs of Crime and Violence: New Evidence and Insights in Latin America and the Caribbean⁶³, publicado em 2017, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), retrata um método contábil similar. Além de ressaltar que o método estima apenas uma porção dos custos reais do crime, o estudo afirma que a diversidade nas bases de dados utilizadas dificulta o estabelecimento de comparações de estimativas.
Da mesma forma, o GITOC⁶⁴, que produziu o Organized Crime Index, mencionado nos tópicos anteriores, publicou no ano passado, 13 artigos, um para cada mercado ilícito que compôs o primeiro índice publicado em 2021, escrito por especialistas renomados como Anna Sergi e Ruggero Scaturro, para responder como se pode medir o crime organizado, informando, de antemão, que não há forma perfeita para tal, e que o principal é ser transparente com a metodologia, como descreve-se neste Anuário.
Um outro bom exemplo é o relatório da OCDE, Risks of Illicit Trade in Counterfeits to Small and Medium-Sized Firms⁶⁵. Sua análise é sobre dados de apreensões provenientes das administrações aduaneiras nacionais, da European Commission’s Directorate-General for Taxation and Customs Union (DG TAXUD), e da World Customs Organization (WCO), que salienta as limitações de sua amostra, especialmente discrepâncias entre os conjuntos de dados, níveis de classificação de produtos ou discrepâncias em termos de bens apreendidos, incluindo possíveis vieses. Ademais, também é aplicada à sua análise uma pesquisa de vitimização com as pequenas e médias empresas.
As fontes de dados e informações utilizadas no cálculo da estimativa de mercados ilícitos e, principalmente, dos impactos provocados na sociedade e Estado encontram-se no Anexo II. E, esclarecimentos mais específicos podem ser prestados mediante solicitação direta ao Departamento de Segurança (DESEG)⁶⁶.
Por fim, um conceito importante utilizado na metodologia é o de externalidade negativa de um mercado. Segundo Pindyck e Rubinfeld (2006)⁶⁷, uma externalidade ocorre quando alguma atividade de produção ou de consumo possui um efeito sobre outras atividades de consumo ou de produção, que não se reflete diretamente nos preços de mercado. O termo externalidade é empregado porque os efeitos são externos ao mercado. A externalidade é negativa quando a ação de uma das partes impõe custos à outra. Logo, detalhes sobre essa externalidade negativa para cada um dos setores analisados são apresentados no próximo capítulo.